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RECONSTRUIR A VERDADEIRA SEGURANÇA NA ERA DA INSEGURANÇA – Vandana Shiva.

Atualizado: 1 de dez. de 2020

ESTE TEXTO É DAVANDANA SHIVA, QUE FOI PUBLICADO NO LIVROECONOMIA DE GAIA,  ORGANIZAÇÃO DO GAIA EDUCATION.



A HUMANIDADE PARECE ESTAR em queda livre rumo ao desastre. A estrutura ecológica da nossa existência está sendo destruída à medida que a violência da globalização corporativa se une à violência da guerra.

Alternativas à guerra, à não sustentabilidade e à justiça social e econômica têm se tornado uma imposição para sobrevivência. Ela precisa combinar a atitude de fazer as pazes com o planeta com atitude de fazer as pazes entre pessoas de culturas distintas. Uma não é possível sem a outra. As raízes do terrorismo, da violência e da guerra encontram-se na exclusão econômica e ambiental e na segurança que ela gera. A segurança das pessoas não está em orçamentos militares mais volumosos, bombas maiores e nem estados policialescos mais fortes. Está na segurança ecológica, econômica, cultural e política. A reconstrução dessas múltiplas seguranças é a única maneira de criar paz, justiça e sustentabilidade.

Por que nós, como espécie, estamos destruindo o próprio alicerce de nossa sobrevivência e existência? Por que a insegurança tem sido o resultado de todas as tentativas de criar segurança? Como nós, na condição de membros da comunidade da terra, podemos reinventar a segurança para garantir a sobrevivência de todas as espécies e o futuro de culturas distintas? Como passar das ruínas da cultura da morte da destruição para cultura que sustenta e celebra a vida?

Podemos fazer essa passagem libertando-nos da prisão mental da separação e da exclusão, para ver o mundo em toda sua interconexão e indissociabilidade, permitindo que novas alternativas surjam. O desespero se transforma em esperança. A violência abre caminho para não violência. A escassez se transforma em abundância, e a insegurança, em segurança. Precisamos mais uma vez sentir em casa na Terra e entre nós. Temos necessidade de um novo paradigma que nos permita passar da cultura difusa da violência para cultura da não-violência, da criatividade e da paz: esse é o paradigma da Democracia da Terra.  

A Democracia da Terra se baseia na criação de ECONOMIAS VIVAS que protejam a vida na Terra, supram as necessidades básicas e promovam segurança econômica para todos. Ela tem como base uma democracia ativa, que é inclusiva. O movimento da Democracia da Terra é um compromisso de superar a crise da injustiça e da desigualdade econômica, da não sustentabilidade ecológica, o declínio da democracia e a ascensão do terrorismo. Esse movimento oferece uma visão de mundo alternativa, na qual seres humanos estão integrados a família terrestre. Começamos a ver que estamos conectados pelo amor, pela compaixão, pela responsabilidade ecológica e pela justiça econômica, que substituem a ganância, consumismo e a competição como objetivos da vida humana. Na Democracia da Terra, a economia, política e a sociedade passam de sistemas negativos, que beneficiam apenas alguns em curto prazo, para sistemas positivos, que garantem o direito fundamental a vida de todas as espécies. A manutenção da vida em sua diversidade e a integridade é a base das relações na Democracia da Terra.

Assim, ela transforma nossa mente e nossas ações, e nos livra de padrões de pensamento e para que nos levaram a situação difícil em que estamos hoje. Também nos ajuda a enfrentar as raízes comuns de problemas que são definidos, isoladamente, como econômicos, ecológicos e políticos. A Democracia da Terra nos capacita a fazer mudanças mentais e contribuem para a satisfação de nossas necessidades tem dentre outras espécies e culturas, e para o aprimoramento do bem-estar humano, enquanto assegura o bem-estar de todos os seres. Na Índia, rogamos: “Que todos os seres sejam felizes”. A Democracia da Terra agrega princípios que nos permitem transcender a polarização, as divisões e as discussões que colocam a economia contra ecologia, o desenvolvimento contra o meio ambiente, as pessoas contra o planeta, e as nações umas contra as outras, em uma nova cultura de medo e ódio. A Democracia da Terra está simbolizada nas fazendas que revitalizam a biodiversidade e nas espécies que atuam em mutualidade para beneficiar umas às outras. Ela também oferece um novo contexto ao ser humano, como um dos membros da família terrestre e das diversas culturas no mosaico da diversidade cultural.

Visto que as outras espécies não votam, não podem influenciar políticos e não tem poder de compra no mercado, a Democracia da Terra nos obriga, como humanos, a levar em conta o bem-estar das espécies. Como Sua Santidade o Dalai Lama disse em seu 60º aniversario: “Todos os seres têm direito ao bem-estar e a felicidade. Temos o dever de garantir o seu bem-estar”. Isso cria a responsabilidade humana de atuarmos com administradores, em vez da noção preponderante de soberania, controle e posse. A Democracia da Terra privilegia a diversidade de forma e de função na natureza e na sociedade. Quando a relevância e o valor intrínseco de todas as formas de vida são reconhecidos, as diversidades biológicas e cultural desabrocham. As monoculturas são resultado da exclusão e da dominação de espécies: único tipo, uma única raça, uma única religião, uma única visão de mundo. Elas são uma indicação de coerção e de perda da liberdade. Liberdade implica diversidade. Diversidade significa liberdade.

A Democracia da Terra nutre a diversidade pela superação da lógica da exclusão, do Apartheid, do “nós e eles” e do “uma coisa ou outra”. Ela implica a multifuncionalidade, na lógica do “e” e da inclusão. Transcende a polarização falsa do selvagem versus o refinado, da natureza versus a cultura, e até mesmo falso choque de culturas. Leva em consideração o conjunto da agrofloresta, tanto a área agrícola quanto a florestal, reconhece que a biodiversidade pode ser preservada e também pode suprir as necessidades humanas. Por meio da substituição das monoculturas pela diversidade e dos sistemas unidimensionais pela multidimensionalidade, a economia negativa da criação de escassez pode ser substituída pela economia positiva da abundância compartilhada, da provisão garantida das necessidades básicas e do acesso aos recursos vitais. Diversidade a criatividade prosperam na natureza e na cultura.

A Democracia da Terra coloca a responsabilidade do centro das nossas relações com os direitos decorrentes dela; diferentemente do paradigma dominante, em que há direito sem responsabilidade e vice-versa. A separação de direitos e responsabilidade está na raiz da devastação ecológica e das desigualdades de gênero e classe. As corporações que lucram com a indústria química, ou a poluição genética derivada das plantações geneticamente modificadas, não são obrigadas a arcar com o fardo dessa poluição. Os custos sociais e ecológicos são exteriorizados e pesam sobre os outros, que foram excluídos das decisões e dos benefícios.

A Democracia da Terra baseia-se na aqueles que pagam o preço por terem voz, e aqueles que carregam uma responsabilidade por terem direitos. Isso cria uma democracia direta ou básica. Por um lado, implica o deslocamento descendente das decisões, indo das instituições globais e dos governos centralizados para as comunidades locais. Por outro, implica uma mudança na nossa interpretação de soberania. Portanto, a Democracia da Terra transfere a constelação de poder das corporações para as pessoas, e desse modo, reequilibra o papel e as funções do Estado, que vem se tornando cada vez mais antidemocrático.

A Democracia da Terra tem a ver com a vida, com direito natural às condições de estar vivo. Trata-se da vida cotidiana das decisões e liberdades relacionadas ao dia a dia – a comida que comemos, as roupas que vestimos, água que bebemos. Não se trata apenas de eleições e do ato de votar. É uma democracia permanentemente vibrante. Combina democracia econômica com as democracias política e ecológica. Ela gera economia, políticas e identidades positivas. Também cria segurança e, assim, condições para a paz.  

Ela oferece potencial para mudar a maneira como o governo, organizações e corporações intergovernamentais operam. Cria um novo paradigma para a governança global, enquanto dá poder as comunidades locais. Também cria a possibilidade de fortalecimento da segurança ecológica, à medida que aprimora a segurança econômica. Com base nas seguranças ecológica e econômica, ela torna as sociedades imunes ao vírus do ódio e do medo. A Democracia da Terra oferece uma nova maneira de ver as coisas, na qual algo não está em guerra como com todo o resto, mas por meio da qual podemos cooperar para a criação da paz, da sustentabilidade e da justiça.



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